Por séculos, artistas e ilusionistas convenceram as massas de que é
possível negar a gravidade ou atravessar paredes. Platéias antigas
surpreendiam-se com truques de levitação que envolviam mulheres voando
em cima de mesas. Mesmo antes disso, inventores faziam marketing dos
seus produtos tentando vender máquinas que faziam coisas impossíveis.
Até hoje, alguns mágicos ainda fazem anéis sólidos entrar um no outro
etc. Mas isso tudo é truque barato perto do que o mundo real tem a
oferecer.
Resfrie um pedaço de metal ou um recipiente de hélio até
quase o zero absoluto e, nas condições certas, você verá o metal
levitar sobre um ímã, hélio líquido subindo as paredes ou sólidos se
atravessando. “Nós adoramos observar esses fenômenos no laboratório”,
afirma o cientista Ed Hinds.
Mas a esquisitice não é apenas entretenimento.
Desses estranhos acontecimentos nós podemos provocar toda a química e
biologia, encontrar salvação para nossa crise energética e talvez até revelar a natureza do universo.
Bem-vindo a um mundo incrível
Esse
mundo é frio. Só existe a poucos graus do zero absoluto, a menor
temperatura possível. Apesar de você imaginar que pouca coisa acontece
nesse frio, este é um mundo selvagem, quase surreal.
Uma maneira
de cruzar esse limiar é resfriar hélio líquido até um pouco acima de
-271.15 Celsius. A primeira coisa que você irá notar é que pode girar o
hélio, e ele vai continuar girando. Isso porque ele agora é um
“superfluido”, um estado líquido sem viscosidade. Outra interessante
propriedade do superfluido é que ele sobe pelas paredes do recipiente.
Apesar
de fascinantes, esses prodígios que desafiam a gravidade talvez não
sejam tão úteis. Porém, as estranhas propriedades térmicas do hélio
superfluido até que têm algum uso prático.
Pegue um líquido normal
da geladeira e ele vai esquentar. No caso de um superfluido, essas leis
não funcionam. Pesquisadores que trabalham no Grande Colisor de Hádrons
(GCH) usam essa propriedade para acelerar raios de prótons. Eles passam
120 toneladas de hélio superfluido ao redor dos 27 quilômetros do
acelerador para resfriar os milhares de ímãs que guiam os raios.
Hélio
líquido comum iria esquentar consideravelmente se usado dessa forma,
mas as extraordinárias propriedades da versão superfluida faz com que a
temperatura suba menos do que 0,1 Celsius por quilometro do arco. Sem os
superfluidos, seria impossível que a máquina preferida entre muitos
físicos funcionasse.
Aliás, os ímãs do GCH também têm superpropriedades. Eles são feitos dos primos dos superfluidos, os supercondutores.
Quando
a temperatura começa a se aproximar do zero absoluto, muitos metais
perdem toda a resistência à eletricidade. Não é apenas uma redução
gradual, mas uma queda dramática a uma temperatura específica. Isso
acontece em um ponto diferente para cada metal, e revela um poderoso
fenômeno.
Muito pouca energia é necessária para que os
supercondutores carreguem grandes cargas, o que significa que eles geram
poderosos campos magnéticos – por isso sua presença no GCH. E assim
como um superfluido roda sem parar, um circuito elétrico em um
supercondutor nunca acaba. Isso os torna perfeitos para transportar
energia ou armazená-la.
Os
cabos usados para transmitir eletricidade dos geradores até as casas
perdem cerca de 10% da energia carregada na forma de calor, devido à
resistência elétrica. Os cabos supercondutores iriam perder 0%.
Armazenar
energia nesse caso seria ainda mais interessante. Fontes renováveis,
como a vinda do sol, do vento ou das ondas, iriam conseguir um avanço
incrível. Se os supercondutores fossem usados para guardar o excesso
produzido, a demanda das fontes seria reduzida, e os problemas
energéticos mundiais seriam bem reduzidos.
E nós já estamos
colocando supercondutores para trabalhar. Na China e Japão, trens
experimentais usam outra qualidade do mundo supercondutor: o efeito
Meissner.
Solte
um pedaço de supercondutor em cima de um ímã e ele vai deslizar por
cima, ao invés de cair. Isso porque o ímã induz correntes no
supercondutor que criam seu próprio campo magnético, em oposição ao do
ímã. A repulsão mútua mantém o supercondutor no ar. Coloque um trem em
cima disso e você tem a base certa para levitar – um sistema de
transportes sem fricção. Esses trens magnéticos não usam metais
supercondutores por ser muito caro mantê-los resfriados; ao invés disso,
eles usam cerâmicas que conseguem superconduzir a temperaturas mais
altas, tornando o processo muito mais fácil e barato de ser resfriado
com nitrogênio líquido.
Uma história de duas partículas
São
comportamentos estranhos esses, não? Tanto a superfluidez quanto a
supercondutividade são produtos do mundo quântico. Imagine que você tem
duas partículas idênticas, e você troca a posição delas. O sistema
físico parece o mesmo, e responde de maneira igual. Mas, de acordo com a
mecânica quântica, uma partícula pode existir em vários lugares e se
mover em mais de uma direção ao mesmo tempo.
No século passado,
teóricos demonstraram que as propriedades físicas de um objeto quântico
dependem da soma de todas essas possibilidades para dar a probabilidade
de encontrá-lo em determinado estado. Existem dois resultados dessa
soma, um onde o fator fase é 1 e outro é -1. Esse número representam
dois tipo de partículas, os bóson e os férmions.
A
diferença entre eles fica clara em baixas temperaturas. Isso porque
quando se retira toda a energia termal, quando está próximo do zero
absoluto, não existem muitos estados energéticos disponíveis. As únicas
possibilidades nas equações teóricas quânticas são as mudanças de
posições das partículas.
Mudar o bóson dá uma mudança de fase 1.
Usando as equações para as propriedades dos bósons, se descobre que seus
estados se revelam de uma maneira direta, ou seja, existe alta
probabilidade de encontrar bósons indistintos no mesmo estado quântico.
Em
1924, Albert Einstein e Satyendra Bose sugeriram que, em temperaturas
muito baixas, os corpos de bósons indistinguíveis iriam se aglutinar e
funcionar como um objeto único, hoje conhecido como condensado de
Bose-Einstein, ou CBE.
Átomos de hélio são bósons, e a sua
formação em CBEs é o que gera o superfluido. Você pode imaginar o hélio
CBE como um átomo gigante em um estado energético quântico mais baixo.
Suas estranhas propriedades derivam disso.
A falta de viscosidade,
por exemplo, deriva do fato de que existe um espaço muito grande entre
esse estado energético e o próximo possível. A viscosidade é
simplesmente a dissipação de energia por fricção, mas já que CBE está no
estado energético mais baixo possível, não há como perdê-la. Apenas
adicionando muita energia você consegue tirar um líquido do estado de
superfluidez.
Supercondutores também são CBEs. Aqui, entretanto,
existe uma complicação porque os elétrons, as partículas responsáveis
pela condutividade elétrica, são férmions.
Férmions
são solitários. Trocá-los de lugar é como por a mão esquerda na direita
– as coisas não parecem as mesmas. Matematicamente, essa ação introduz
uma mudança de fase -1 na equação que descreve suas propriedades. O
resultado quando se soma todos os estados é zero. E há probabilidade
zero de encontrá-los no mesmo estado quântico.
Nós deveríamos
ficar felizes com isso: é a razão da nossa existência. Toda a base da
química reside nesse princípio de que férmions idênticos não podem estar
no mesmo estado quântico. Isso força os elétrons do átomo a ocupar
posições mais e mais longes do núcleo. Isso os deixa com uma pequena
atração aos prótons centrais, liberando-os para outras atividades
químicas. Sem o sinal negativo gerado pela mudança de posição dos
elétrons, não existiriam estrelas, planetas ou vida.
Então como
elétrons em supercondutores formam os CBEs? Em 1956, Leon Cooper
demonstrou como elétrons que se movem em um metal podem se juntar em
pares e adquirir características de um bóson. Se todos os elétrons de um
cristal metálico formarem pares Cooper, esses bósons iram se juntar,
formando uma partícula gigante – um CBE.
A maior consequência
disso é a inexistência de resistência elétrica. Em metais comuns, a
resistência acontece devido a elétrons que se deparam com os íons do
objeto. Mas uma vez que ele se torna um supercondutor, o par de elétrons
se condensa no estado mais baixo possível. Assim não há energia
dissipada, e uma vez que os pares Cooper foram feitos para fluir em uma
corrente elétrica, eles simplesmente continuam correndo. A única forma
de atrapalhar a supercondutividade sem aumentar a temperatura é
adicionando energia de outra forma, como um campo magnético muito forte.
Apesar
dos superfluidos e condutores serem bem bizarros, eles não são o limite
do mundo quântico. “Existe ainda outro nível de complexidade”, comenta
Ed Hinds. Ele vem quando se brinca abaixo de -272,15 Celsius e a mais de
25 vezes a pressão atmosférica da Terra. Nesse ponto o hélio fica
sólido – e destrói nossas noções de solidez. Nas condições certas, você
pode fazer sólidos atravessarem um o outro, como fantasmas.
Esse
efeito foi observado pela primeira vez em 2004, por Moses Chan e
Eunseong Kim, da Pensilvânia. Eles colocaram o hélio sólido em uma cuba
que podia se mover rapidamente para frente e para traz, gerando
oscilações no sólido. Eles observaram uma frequência vibracional
ressonante, interpretada como indicativo de que havia dois sólidos ali,
passando um pelo outro.
Obviamente,
os dois sólidos não combinam com nossas definições tradicionais. Um
deles era “vago”, criado quando os átomos de hélio ficavam livres do
entrelaçamento que forma o hélio sólido. Esses espaços têm as
propriedades de uma partícula real – são tão reais que seus estados
quânticos podem se unir para formar um CBE. O hélio sólido também é um
CBE, e são esses dois condensados que se atravessam.
As
observações de Chan e Kim ainda são um pouco controversas; alguns
pesquisadores pensam que existe uma explicação melhor que envolve
deformações e defeitos na malha do hélio. “Existe muita atividade,
várias noções teóricas e experimentos, mas nenhum consenso”, comenta o
cientista Robert Hallock.
Não por menos, o simples fato de ser
possível criar sólidos que não são exatamente sólidos mostra como as
“supercoisas” são interessantes. E tudo, desde os seres humanos até
fenômenos estranhos a baixas temperaturas, é derivado do fato de que
existem dois tipos de partículas: as que gostam de socializar, e as que
não gostam. Soa familiar? Talvez o mundo quântico não seja tão diferente
de nós.
Superátomos extremos
Superfluidos,
supercondutores e supersólidos têm seu comportamento bizarro devido à
formação de algum tipo de superátomo dentro deles, o já comentado
Condensado de Bose-Einstein (CBE).
Mas seria possível criar tal
estado fora de um líquido ou sólido? Levou muitos anos de pesquisa, mas
uma equipe do Colorado conseguiu, em 1995, transformar um gás de rubídio
em CBE, o estado quântico mais baixo possível. Pelo feito, os líderes
da equipe, Carl Wieman e Eric Cornell, em conjunto com o pesquisador
Wolfgang Ketterle, ganharam o Nobel de Física em 2001.
Quando
Wieman e Cornell fizeram o condensado, o laboratório se tornou
brevemente o local mais frio do universo: cerca de 20 nano Celsius
abaixo do zero absoluto.
No
ano passado, o telescópio de raios-X Chandra descobriu que o núcleo de
uma estrela de nêutrons, chamada de Cassiopeia A, há 11 mil anos-luz da
Terra, é um superfluido. Uma colher de chá do material de uma estrela
desse tipo pesa seis bilhões de toneladas, e a pressão das camadas
externas é suficiente para tornar o núcleo um CBE. E, apesar do nome, o
centro de uma estrela de nêutrons não é formado exclusivamente por
nêutrons: ele contém uma porção de prótons também, que formam um CBE.
Você pode enxergar esse fenômeno como um superfluido ou, devido aos
prótons que carregam cargas elétricas, um supercondutor.
Fonte: http://www.newscientist.com/
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